Aqui Rubens Pontes: Meu poema de sábado – Dos dias de cólera, de Luz Ribeiro
Publicado em 10/nov/2018, 10:08
Por Don Oleari
Com 51 por cento do eleitorado brasileiro, a mulher, com seu voto, foi determinante para eleger o presidente da República, governadores de Estado e membros Congresso Nacional..
E, no entanto, até chegar à posição de eleitora, seu percurso para conquistar o direito de votar foi mais difícil do que cruzar o Desfiladeiro das Termópilas .
Eminente e respeitado representante da velha política capixaba, o líder da bancada na Câmara, Heitor de Souza (foto), em dezembro de 1921, manifestou sua preocupação com a possibilidade de se estender à mulher o direito do voto:
– “Sou levado a reconhecer que o nível intelectual da mulher brasileira não está em condições de justificar a concessão do direito de votar, de tão grande alcance social, que viria alterar profundamente os costumes patriarcais da família”
Muniz Freire (foto à direita), que mais tade seria eleito presidente do Estado, profligou, quando ocupava no Congresso um cadeira como representante do Espírito Santo, igual preocupação ao ser votada proposta de emenda constitucional:
– “Essa aspiração se me afigura imoral e anárquica. No dia em que a convertêssemos em lei pelo voto do Congresso, teríamos decretado a dissolução da família brasileira.“
(Nota do Portal: em 1892, Muniz Freire foi eleito Presidente do Estado, tendo realizado excelente administração. Casou-se com figura da elite social de São Paulo, poliglota e cantora lírica que daria nome à atual cidade de Colatina).
O que nenhum daqueles parlamentares contava era com a herança de determinação de mulheres como dona Luíza Grimaldi, viúva do donatário Vasco Fernandes Coutinho, que em 1589 assumiu com mãos de ferro a Capitania do Espírito Santo.
Ou da rio-grandense do Norte Celina Guimarães (foto à esquerda), primeira eleitora brasileira (como registramos na coluna passada) ou da capixaba de Guaçuí, Emiliana Vianna Emery (foto à direita, doceira como Cora Coralina), a primeira mulher no Estado do ES a conquistar com muita luta o direito de votar:
– “Aqui em Siqueira Campos (*) só tem dois homens: eu e o padre Miguel. E ambos usamos saia”, disse ela ao superar dura resistência ao direito de votar.
(*) Siqueira Campos era o nome de Guaçuí.
No espaço de geografia e tempo entre os distantes registros e as conquistas da fase atual, as mulheres foram ocupando os espaços que lhes eram vedados, e hoje se destacam na vida pública e na política brasileiras.
Anda agora, temos no Espírito Santo uma vice-governadora eleita, Jacqueline Moraes (à esquerda).
Em São Paulo a candidata à Assembleia Legislativa Janaina Paschoal (abaixo, à direita) – uma das autoras do documento que pediu o impedimento da então presidente Dilma Rousseff – obteve fantástica votação superior a 2 milhões e 100 mil votos (a marca anterior fora do deputado estadual Fernando Capes – 306.268 votos).
A escolha do nosso poema para este sábado foi unânime: do colunista, do Portal, da Rádio Clube da Boa Música e do programa Sociedade dos Poetas Vivos, e reflete a nossa incondicional solidariedade à presença da mulher na vida do País e naturalmente na vida de cada um de nós. É assim que o Brasil e os homens estão sendo certamente cada vez mais felizes.
Muito a propósito do tema, a poeta Luz Ribeiro teve que superar os mesmos preconceitos para ter seu nome reconhecido nos círculos fechados da elite intelectual brasileira.
Negra, gorda, feia, bissexuale pobre, quase um estigma que, segunda ela mesma, marcou fundamente sua vida exigindo força, tenacidade, superação, para ser finalmente reconhecida como pensadora e intérprete de uma sofrida classe social.
– “Mnha mãe sempre me dizia: “por ser preta, você tem que ser duas vezes melhor”.
Primeira mulher vencedora do BR-Slam, Campeonato Brasileiro de Poesia Falada promovido pelo Itaú Cultural em 2016, com essa conquista foi indicada para representar o Brasil na disputa mundial na França, o “Slam Nation et Coupe du Monde” (certame foi criado pelos Estados Unidos na década de 80).
Seu poema“Menimelímetros “ foi o escolhido para mostrar sua arte de versejar.
Rubens Pontes
Capim Branco, MG.
Dos dias de cólera
Luz Ribeiro
hoje eu resolvi abrir o peito
e enxergar o quanto que cabe aqui dentro
foram mais de 20 anos tentado me esconder
buscando uma resposta que me fizesse ver
entregando para tantos o que só cabe a mim
um coração sofrido que pra toda dor consente um sim
e ao findar de cada experiência
sente mais os hematomas do que a própria consciência
preta blindada dos pés a cabeça
fria por necessidade, não por natureza
busco nutri meu ori pra achar uma fortaleza
e ainda que fraca que haja luz e aqueça
minha pele negra também busca um lugar ao sol
quero meu espaço mas vocês me cedem um anzol
dizendo que agora tenho uma vara pra pescar
mas não é igual a sua, né? É fácil notar
por séculos convivemos com a escravidão
fomos soltos sem direito a um pedaço de chão
o reflexo do mal feito é visto hoje nas quebradas
gente preta é a maior parte da classe favelada
os livros que eu li eram da filha da patroa
porque ela dizia que depois de um tempo isso enjoa
e até hoje por eles eu tenho obstinação
os livros na minha casa são mais que objeto de decoração
por anos me afastei das línguas do colonizador
achava que estuda-las me tornaria talvez mais inferior
ignorância minha, achar que o venceria sem ler meu manual de instrução
mas hoje eu estudo seus dialetos e renovo minha munição
cada vez que eu abro a boca eu ouço o ruído dos chicotes
a impecabilidade da nossa língua foi adquirida nos açoites
pra me fortificar ouço palavras em yoruba
busco saber sobre orixás e patuás
ninguém esconde mais de mim minha própria história
e pode chamar mesmo me de vitimismo meu plano de vitória
já tou ligando a diáspora daqui com a diáspora de lá
e logo menos vocês irão avistar
uma legião vestida de preto que não abaixa a cabeça
não se contenta com lei áurea, quer mais é ser realeza
vai devolver com diplomas cada soco e esporro
aqui ninguém mais marca toca e precisar asfixiamos com gorro
não alisarei meu cabelo para ser aceita
hoje sei que nossa religião não é seita
todos esses mal tratos é uma dívida sem reparação
por isso eu quero cotas e tudo que houver cifrão
sou afilhada bastarda e não quero ser filha da pátria
sou a própria puta por tantas vezes sexualizada
minhas ancestrais tiveram as saias levantas
e daí que surge tanta gente miscigenada
por isso não vejo beleza no processo de miscigenação
e nem quando os brancos exclamam: eu tenho sangue de negão
essas frases não provam nada e só trazem mais dor
então faz um chá de bom senso e tome um gole por favor
não sou filha de pardal, muito menos de mula
não tenho didática minha ira não cabe em bula
e se pode não ser menos preconceituoso, disfarce
pegue suas falsas verdades e engula
Rubens Pontes,
jornalista, radialista,
publicitário,escritor,
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